Escrito por Anna Hirsch Burg - Psicanalista
"Nós consumidores, parecemos sempre estar 'assanhados' e 'sedentos' pelo prestígio que as mercadorias conferem".
(Contardo Calligaris)
Geralmente esse desejo aparece fortemente na infância ou talvez na pré-adolescência: quem não se lembra da sensação de querer completar um álbum de figurinhas? Quem pode ter se esquecido da "excitação" ao abrir o pacotinho comprado na banca e verificar se as figurinhas vieram repetidas? Quem não se sentiu o máximo quando conseguiu figurinhas "difíceis" que todos queriam e até mesmo se comportava direitinho pra ganhar dinheiro da mãe, pai, avo, tio, até do zelador, pra comprar mais e mais figurinhas até preencher tudo - até colar a última e tão esperada figurinha.
Alguém se lembra de como era até estranhamente frustrante, de certa maneira, colar a ultima figurinha do álbum? Agora com ele completo, qual seria a próxima brincadeira?
Para a psicanálise, a psique funciona como um receptáculo em busca da figurinha que falta. Que bom: na melhor das hipóteses estamos sempre desejando algo - já que a depressão significa não desejar.
A boa (ou má) noticia é que essa última figurinha não existe. Sim, quando éramos crianças ao completarmos o álbum já partíamos em busca de outra diversão. Adultos? Estamos sempre e ininterruptamente em busca de satisfação.
É um pacote de figurinhas atrás do outro: "ah, o dia em que eu casar", "ah, o dia em que eu tiver filhos", "ah, a casa", "ah, o carro", "ah, cozinha dos sonhos", "ah, o corpo emagrecido"... Mas, mesmo conquistando aquilo o que desejamos, ainda nos parece faltar alguma coisa. Sempre irá faltar?
Freud percebeu que somos seres do desejo e não da necessidade. Isso quer dizer: não nos contentamos simplesmente com a manutenção do biológico, ou seja, em nos alimentar, vestir, morar. Mas, como seres de desejos e fantasias, estamos sempre em busca de satisfazê-los e preocupados com isso - para quem vestir?, Para quem usar? Para quem mostrar? Para quem exibir? Assim notamos que não é o objeto que possui o valor em si, mas sim o valor que cada pessoa veste ou reveste no objeto.
Nós, psicanalistas, estamos nos empenhando para compreender de que jeito a sociedade do consumo opera na psique das pessoas na pós-modernidade. Vemo-nos frente a um paradoxo: um grande leque de objetos oferecidos pela indústria de consumo para, possivelmente, dar vasão a desejos e fantasias, e um leque proporcional de pacientes viciados em consumir e muito endividados.
Não é raro ouvir no consultório algo como: "não consigo mais caber em meu quarto, tem tanta roupa e não consigo arrumar e muito menos parar de comprar". Ou, mais extremado ainda, quando alguém conta que abarrota a própria casa e não recebe visitas, pois "não cabe mais ninguém".
As pessoas estão tendo um "relacionamento" mais íntimo com objetos do que com pessoas?
Não serei simplista dizendo que as pessoas compram porque lhes faltam amor, carinho, amigos. Sim, pode até ser o caso, mas não acredito que seja a essência da questão. Nem culparei os cartões de credito que possibilitam as dívidas, já que o dinheiro tornou-se virtual. Virtual? O dinheiro, mas não a dívida com o banco.
Entendo que a grande vilã da historia seja a dificuldade em fazer escolhas que nos capacite ter prazer a longo prazo. Em outras palavras, a antagonista é a impossibilidade de evitar o prazer imediato. Vivemos em uma sociedade que nos faz convites ininterruptos a um vício lícito - o consumir.
Outro dia vi grafitado num muro uma frase com sentido duplo: "Consumo, logo existo".
E o que a psicanálise tem a oferece perante esse quadro?
Assim como em relação a outros temas, nós psicanalistas temos como objetivo mostrar ao paciente as fantasias e desejos inconscientes que revestem suas escolhas. Isso significa demonstrar ao paciente quais foram as estratégias por ele usadas para transferir e continuar transferindo aos outros o peso de suas escolhas.
Partimos do principio que a análise leva o paciente a se responsabilizar pelas suas escolhas. Não há só a sorte ou o revés como no jogo de figurinhas, não responsabilizando apenas pai, mãe, namorado e adjacentes.
É inegável que consumir é muito gostoso, mas, escolher o que e quando consumir evita a dependência e a escravidão e isso se estende a relacionamentos amorosos, de amizade e por aí afora.
Se a história de vida do analisando foi e está difícil, a saída está em saber escolher o que vai se fazer diante disso e se reinventar. Pode parecer estranho, num primeiro momento, mas é extremamente libertador - literalmente liberta (a) dor. O início e o fim do processo remetem a mesma questão: diga-me o que escolhes e eu te direi quem és! Escolha alguma coisa, vá ao seu encontro ou saia e busque, tente alcançar, se não conseguir escolha outra, com certeza terá outra opção que poderá ser boa.
Uma musica muito engraçadinha da Vanessa da Mata resume maravilhosamente tudo, chamada Bolsa de grife:
"Comprei uma bolsa de grife, mas ouçam que cara de pau, ela disse que ia me dar amor, acreditei, que horror, ela disse que ia me curar a gripe, desconfiei, mas comprei (...) Ainda tenho a angustia e a sede, a solidão, a gripe e a dor. E a sensação de muita tolice nas prestações que eu pago pela tal bolsa de grife".
Boas escolhas!